LOST EMPIRES
ensaio
2014/05
Nuno Perestrelo
Uma vez mais, cruzo os portões fechados e entro neste lugar imbuído num estranho silêncio. Tudo aquilo que se ouve é o canto das aves que montaram os seus ninhos no cimo dos edifícios fabris. Décadas de intensa actividade industrial continuam presentes nos solos poluídos; agora misturados com vegetação alta e todos os tipos de cores. A natureza reclama o seu lugar original o quanto antes. Um som ferrugento sai da porta à medida que se vai abrindo, a ranger. Depois o som dos vidros partidos a estalarem, a se estilhaçarem no chão em consonância com os meus passos. Entrada não autorizada a estranhos – estamos na sala de controlo de onde os engenheiros comandavam, bombeavam o coração da siderurgia. Ali ao lado, milhares de operários labutavam dia e a noite, fins-de-semana incluídos. Agora não resta mais ninguém.
Este lugar foi, em tempos, o maior investimento jamais feito ao longo da história industrial portuguesa. Em 1961 um sonho proclamado por diversas vezes em Portugal desde os primórdios do século XX começava a produção com 6 mil trabalhadores. Esse sonho era uma siderurgia com um alto forno – Siderurgia Nacional.
Tal como aconteceu com outros sectores vitais da economia portuguesa em mãos privadas quando veio a Revolução dos Cravos em abril de 1974, a empresa foi nacionalizada. Mais tarde dividida, cortada em três áreas e empresas diferentes. Dessas, a mais importante é hoje espanhola, uma empresa estrangeira com menos de 1000 trabalhadores. O “coração da fábrica”, a designação dada pelos operários ao alto forno, foi desactivado em 2001 em conjunto com outras instalações complementares. 800 pessoas despedidas.
A emblemática estrutura do alto forno onde o Governo diz querer erguer um museu está agora muito calada. O sol já se foi. Uma lata de cerveja vazia, restos de maquinaria, escritos técnicos, cálculos e cadeiras solitárias preenchem a sala que vou descobrindo à medida que a ilumino com uma lanterna. Aponto-a à parede e deparo-me subitamente com aquilo que parece ser uma criatura vinda de outro planeta. É um desenho feito a partir dos circuitos e botões eléctricos na parede, agora desactivados. Faço uma fotografia. E continuo a andar para a sala seguinte, que está completamente vazia e não tem nada excepto alguns armários de cozinha. É um dos antigos refeitórios da siderurgia, sem mesas, sem pratos. O mesmo sítio registado numa fotografia antiga com alguns operários ao redor de uma mesa. Preparavam-se para começar a comer o almoço, ainda quente a libertar vapor.
Não muito longe dali, o céu está hoje incrivelmente azul. Já não há qualquer vapor ou fumo a sair das antigas chaminés da CUF – Companhia União Fabril. Quase todas as antigas fábricas já foram demolidas, e vegetação cor-de-rosa cresce agora onde estavam as fábricas de adubos, ácidos, rações animais e outros produtos químicos. De certo modo a natureza continua a operar reacções químicas como aquelas que tiveram lugar nesta terra ao longo de quase 70 anos.
Esta terra era tradicionalmente habitada por agricultores e pescadores. Mas deixou de o ser a partir do momento em que se tornou a cidade que onde se estabeleceu entre 1908 e 1975 aquele que se viria a tornar no maior grupo industrial e económico português. Quase todo o habitante do Barreiro tem uma ligação à CUF e lembrará os tempos em que pairava sobre a cidade uma constante nuvem de fumo tóxico, tão densa que tornava o ar irrespirável o suficiente para assustar potenciais turistas. E mesmo sem considerar o fumo, as fronteiras entre os bairros e as centenas de fábricas nunca estiveram claramente definidas para os mais de 12 mil trabalhadores das indústrias dos químicos, das rações animais, do sector têxtil e do tabaco, dos óleos e azeites, das docas e do sector da construção naval; entre outros sectores-chave da CUF.
Num dia diferente, a 30 minutos de distância. Na doca seca também já não há qualquer ruído. Enormes navios, incluindo os maiores petroleiros circum-navegando os oceanos do mundo para saciar a fome mundial pelo ouro negro, costumavam ficar estacionados aqui. Aqui se os construíam, aqui se reparavam. Bem aqui, ao lado de Lisboa e do Oceano Atlântico onde, na era dos Descobrimentos, os marinheiros portugueses também preparam e levaram as suas caravelas para ‘descobrir’, colonizar, escravizar e comercializar com a África, a América, a Ásia.
Seguindo essa ligação geográfica vital que une Portugal aos mares, o primeiro estaleiro naval da Lisnave tornou-se no maior e mais avançado do seu tipo em toda a Europa, e também uma referência a nível mundial, no espaço de alguns anos após a sua inauguração em 1967. No auge, rege o quotidiano de quase 10.000 trabalhadores. O número de operários era tão expressivo que qualquer acto de contestação colectiva teria um impacto imediato na opinião pública. E por isso mesmo a Lisnave transforma-se na arena perfeita para a discussão política e luta sindical, num período em que Portugal acabara de sair de 48 anos de ditadura e a crise do petróleo dos anos 80 faz tremer a economia mundial. Desde que encerrou no final dos anos 90, aquela mesma área tirada ao rio Tejo que elevou Almada a cidade é agora não mais do que um enorme cemitério industrial à espera de um novo destino, ainda incerto.
À medida que se sobem as escadas do edifício da administração da Lisnave, com uma altura superior a 10 andares, Lisboa continua a observar o antigo estaleiro do outro lado das águas vazias. Ao abrir a porta para o interior, um elevador é agora um perigoso buraco ao lado de salas de escritórios sem qualquer mesa que reste e onde o musgo se apodera pouco a pouco do chão. Do outro lado das janelas a grua (ou o pórtico) do estaleiro ainda lá permanece, pronta a suster 800 toneladas de peso sob a doca seca. Os pombos ocupam agora estas salas, e os esqueletos de alguns animais mortos no chão assumem a perfeita metáfora de quão morto este lugar está. Preparo o tripé. Click!
Devagar. Cada passo que dou tem de ser cuidadosamente medido. Não vai demorar muito até que o frágil chão onde caminho comece a derrocar. Gotas de água caem do telhado, esburacando pouco a pouco este chão de madeira dos anos 20. Neste mesmo espaço centenas de mulheres transformavam e davam diferentes formas à cortiça, o recurso dos sobreiros tão abundantes em Portugal. Activa no Seixal desde 1905, a Mundet importou conhecimento do estrangeiro e liderou, em tempos, a indústria corticeira portuguesa. Exportava para todo o mundo, países como os Estados Unidos, Índia, Japão, África do Sul, e um pouco por toda o centro e norte da Europa. Na década de 1940 só esta fábrica com mais de 100 secções de produção tinha perto de 2500 trabalhadores. As mulheres eram a maioria.
Ao lado da maquinaria pesada é possível encontrar objectos pessoais, memórias de tempos distantes. Pilhas de jornais e documentos, um calendário de 1987, autocolantes e pósteres com as estrelas da altura e panfletos políticos, fotografias antigas, um mapa da União Soviética. Os trabalhadores ainda estão dentro da fábrica. Ainda que não estejam. Oficialmente não desde 1988, o ano em que, após o arrastar de um doloroso processo de falência, os trabalhadores da Mundet calam as máquinas, deixam para trás os seus sapatos de trabalho e subitamente desaparecem. E nunca mais voltaram.
Os trabalhadores desaparecidos foram parte de um então poderoso, ainda que breve, período de industrialização em Portugal. Em contraste com anos recentes, onde metade do desemprego continua a acontecer dentro das fábricas. A realidade mudou.
A revolução industrial foi uma das raízes da globalização como inevitavelmente a conhecemos hoje em dia, e esta história foi semelhante em todo o mundo. Continua a acontecer, e os mesmos argumentos usados em nome do progresso e da evolução humana são hoje tão válidos como no passado.
Desde o início, a industrialização começou uma nova era dominada pelo espectro da funcionalidade e da técnica, onde a figura do engenheiro representa o que o sacerdote foi na Idade Média. Onde o Alto Forno ou a grua do estaleiro naval assumem a mesma monumentalidade que teve a catedral em séculos anteriores. Bernd e Hilla Becher, o duo de fotógrafos alemães que criaram durante décadas um documento da arquitectura industrial germânica, concordaram nessa mesma ideia:
“Tal como o pensamento medieval é manifestado numa catedral gótica, a nossa era revela-se em edifícios e dispositivos tecnológicos. (…) As tarefas estruturais de eras passadas foram, na sua essência, realizadas. Os desafios a que se enfrenta a habilidade inventiva do Homem são de uma natureza técnica”.
A técnica é normalmente apoiada e revelada em números. No entanto, num tempo em que as notícias que nos rodeiam contêm cada vez mais estatística económica e relatórios financeiros de todo o tipo, torna-se necessário visualizar qual a origem de tais entidades numéricas. Quando temos uma imagem daquilo que a economia representa na realidade, ela deixa de ser uma teoria abstracta, um exercício meramente racional, para em vez disso se transformar em algo com um significado directo para as vidas das pessoas.
É um facto que números, assim como a ideia de progresso arrastaram consigo as vidas e sonhos de gerações inteiras de indivíduos, famílias, trabalhadores, gerentes, investidores. Mas no final, de quem falamos? Como é que chegámos ao ponto em que nos encontramos? Números e estatísticas foram, e ainda são, um resultado directo de máquinas e instalações industriais que transformaram profundamente a forma como as sociedades humanas se organizaram em si mesmas. A indústria provocou também uma enorme transformação na paisagem, quer através dos fenómenos da arquitectura e do urbanismo como através da poluição e dos efeitos da química. Cidades foram erguidas, e agricultores tiveram de se mudar para outro lado. Os rios tornaram-se impróprios para a pesca.
Uma viagem solitária foi feita ao longo de vários meses para descobrir alguns dos maiores ícones industriais da história recente de Portugal. E hoje transformados em zonas arqueológicas a apodrecer aos poucos. Estas foram empresas que afectaram dezenas de milhares de pessoas; grande parte delas migrando do interior e sem grande escolha que não a de trocar o trabalho na agricultura pelas novas indústrias carentes de mão-de-obra.
Lost Empires é um projecto de fotografia documental que procura seguir a tradição de criar um documento visual de uma era. Nalguns casos é uma era que está em risco de extinção, ou que até já morreu. Enquanto noutros é uma história de transformação e adaptação a novas circunstâncias.
Ao mesmo tempo este também é um registo histórico. Muitas destas áreas, edifícios, e instalações já foram demolidas. Outras ousam lentamente seguir o caminho da reabilitação. Enquanto muitos outros enfrentam o risco iminente de derrocada a qualquer momento uma vez que já nada pode ser feito para salvar tais espaços. Em tal contexto, cabe por isso à fotografia assumir o papel da derradeira salvação. A câmara ajuda a fornecer um último registo daquilo que resta destes marcos territoriais e ícones da arquitectura industrial portuguesa. E que continuam presentes não só na paisagem como também na memória colectiva daqueles que ainda vivem com ela.
Ao longo destas imagens o espectador e leitor terá a oportunidade de aprender e observar a arquitectura de algumas das maiores empresas industriais da história recente de Portugal, tal como terá a mesma chance de observar o que resta e o que não resta, que traços da história, do tempo, do barulho e da poluição, continuam presentes dentro das fábricas abandonadas. Ou ainda quão grande é o impacto da erosão e das forças da natureza que já tomaram conta destes espaços.
Esta viagem visual irá levá-lo (ou levá-la) até à margem sul de Lisboa, ao longo do rio Tejo, cujo acesso rápido ao porto da capital e ao Atlântico era visto por estas quatro indústrias de peso, agora fotografas, como um ponto estratégico. Tal não foi uma coincidência. Desde o século XV que o Tejo havia sido um ponto estratégico, ou ponto de partida para os marinheiros que dali embarcaram nas caravelas e deram início a uma série de viagens que iriam mudar por completo a nossa percepção do planeta.
Esta é também uma oportunidade para reflectir sobre o significado de tamanho vazio industrial, sobre o que este diz acerca de um país que cria hoje em dia mais emigrantes do que nascimentos. Um país cujos engenheiros se formam e partem em seguida rumo às zonas industrial do século XXI.
ensaio
2014/05
Nuno Perestrelo
Uma vez mais, cruzo os portões fechados e entro neste lugar imbuído num estranho silêncio. Tudo aquilo que se ouve é o canto das aves que montaram os seus ninhos no cimo dos edifícios fabris. Décadas de intensa actividade industrial continuam presentes nos solos poluídos; agora misturados com vegetação alta e todos os tipos de cores. A natureza reclama o seu lugar original o quanto antes. Um som ferrugento sai da porta à medida que se vai abrindo, a ranger. Depois o som dos vidros partidos a estalarem, a se estilhaçarem no chão em consonância com os meus passos. Entrada não autorizada a estranhos – estamos na sala de controlo de onde os engenheiros comandavam, bombeavam o coração da siderurgia. Ali ao lado, milhares de operários labutavam dia e a noite, fins-de-semana incluídos. Agora não resta mais ninguém.
Este lugar foi, em tempos, o maior investimento jamais feito ao longo da história industrial portuguesa. Em 1961 um sonho proclamado por diversas vezes em Portugal desde os primórdios do século XX começava a produção com 6 mil trabalhadores. Esse sonho era uma siderurgia com um alto forno – Siderurgia Nacional.
Tal como aconteceu com outros sectores vitais da economia portuguesa em mãos privadas quando veio a Revolução dos Cravos em abril de 1974, a empresa foi nacionalizada. Mais tarde dividida, cortada em três áreas e empresas diferentes. Dessas, a mais importante é hoje espanhola, uma empresa estrangeira com menos de 1000 trabalhadores. O “coração da fábrica”, a designação dada pelos operários ao alto forno, foi desactivado em 2001 em conjunto com outras instalações complementares. 800 pessoas despedidas.
A emblemática estrutura do alto forno onde o Governo diz querer erguer um museu está agora muito calada. O sol já se foi. Uma lata de cerveja vazia, restos de maquinaria, escritos técnicos, cálculos e cadeiras solitárias preenchem a sala que vou descobrindo à medida que a ilumino com uma lanterna. Aponto-a à parede e deparo-me subitamente com aquilo que parece ser uma criatura vinda de outro planeta. É um desenho feito a partir dos circuitos e botões eléctricos na parede, agora desactivados. Faço uma fotografia. E continuo a andar para a sala seguinte, que está completamente vazia e não tem nada excepto alguns armários de cozinha. É um dos antigos refeitórios da siderurgia, sem mesas, sem pratos. O mesmo sítio registado numa fotografia antiga com alguns operários ao redor de uma mesa. Preparavam-se para começar a comer o almoço, ainda quente a libertar vapor.
Não muito longe dali, o céu está hoje incrivelmente azul. Já não há qualquer vapor ou fumo a sair das antigas chaminés da CUF – Companhia União Fabril. Quase todas as antigas fábricas já foram demolidas, e vegetação cor-de-rosa cresce agora onde estavam as fábricas de adubos, ácidos, rações animais e outros produtos químicos. De certo modo a natureza continua a operar reacções químicas como aquelas que tiveram lugar nesta terra ao longo de quase 70 anos.
Esta terra era tradicionalmente habitada por agricultores e pescadores. Mas deixou de o ser a partir do momento em que se tornou a cidade que onde se estabeleceu entre 1908 e 1975 aquele que se viria a tornar no maior grupo industrial e económico português. Quase todo o habitante do Barreiro tem uma ligação à CUF e lembrará os tempos em que pairava sobre a cidade uma constante nuvem de fumo tóxico, tão densa que tornava o ar irrespirável o suficiente para assustar potenciais turistas. E mesmo sem considerar o fumo, as fronteiras entre os bairros e as centenas de fábricas nunca estiveram claramente definidas para os mais de 12 mil trabalhadores das indústrias dos químicos, das rações animais, do sector têxtil e do tabaco, dos óleos e azeites, das docas e do sector da construção naval; entre outros sectores-chave da CUF.
Num dia diferente, a 30 minutos de distância. Na doca seca também já não há qualquer ruído. Enormes navios, incluindo os maiores petroleiros circum-navegando os oceanos do mundo para saciar a fome mundial pelo ouro negro, costumavam ficar estacionados aqui. Aqui se os construíam, aqui se reparavam. Bem aqui, ao lado de Lisboa e do Oceano Atlântico onde, na era dos Descobrimentos, os marinheiros portugueses também preparam e levaram as suas caravelas para ‘descobrir’, colonizar, escravizar e comercializar com a África, a América, a Ásia.
Seguindo essa ligação geográfica vital que une Portugal aos mares, o primeiro estaleiro naval da Lisnave tornou-se no maior e mais avançado do seu tipo em toda a Europa, e também uma referência a nível mundial, no espaço de alguns anos após a sua inauguração em 1967. No auge, rege o quotidiano de quase 10.000 trabalhadores. O número de operários era tão expressivo que qualquer acto de contestação colectiva teria um impacto imediato na opinião pública. E por isso mesmo a Lisnave transforma-se na arena perfeita para a discussão política e luta sindical, num período em que Portugal acabara de sair de 48 anos de ditadura e a crise do petróleo dos anos 80 faz tremer a economia mundial. Desde que encerrou no final dos anos 90, aquela mesma área tirada ao rio Tejo que elevou Almada a cidade é agora não mais do que um enorme cemitério industrial à espera de um novo destino, ainda incerto.
À medida que se sobem as escadas do edifício da administração da Lisnave, com uma altura superior a 10 andares, Lisboa continua a observar o antigo estaleiro do outro lado das águas vazias. Ao abrir a porta para o interior, um elevador é agora um perigoso buraco ao lado de salas de escritórios sem qualquer mesa que reste e onde o musgo se apodera pouco a pouco do chão. Do outro lado das janelas a grua (ou o pórtico) do estaleiro ainda lá permanece, pronta a suster 800 toneladas de peso sob a doca seca. Os pombos ocupam agora estas salas, e os esqueletos de alguns animais mortos no chão assumem a perfeita metáfora de quão morto este lugar está. Preparo o tripé. Click!
Devagar. Cada passo que dou tem de ser cuidadosamente medido. Não vai demorar muito até que o frágil chão onde caminho comece a derrocar. Gotas de água caem do telhado, esburacando pouco a pouco este chão de madeira dos anos 20. Neste mesmo espaço centenas de mulheres transformavam e davam diferentes formas à cortiça, o recurso dos sobreiros tão abundantes em Portugal. Activa no Seixal desde 1905, a Mundet importou conhecimento do estrangeiro e liderou, em tempos, a indústria corticeira portuguesa. Exportava para todo o mundo, países como os Estados Unidos, Índia, Japão, África do Sul, e um pouco por toda o centro e norte da Europa. Na década de 1940 só esta fábrica com mais de 100 secções de produção tinha perto de 2500 trabalhadores. As mulheres eram a maioria.
Ao lado da maquinaria pesada é possível encontrar objectos pessoais, memórias de tempos distantes. Pilhas de jornais e documentos, um calendário de 1987, autocolantes e pósteres com as estrelas da altura e panfletos políticos, fotografias antigas, um mapa da União Soviética. Os trabalhadores ainda estão dentro da fábrica. Ainda que não estejam. Oficialmente não desde 1988, o ano em que, após o arrastar de um doloroso processo de falência, os trabalhadores da Mundet calam as máquinas, deixam para trás os seus sapatos de trabalho e subitamente desaparecem. E nunca mais voltaram.
Os trabalhadores desaparecidos foram parte de um então poderoso, ainda que breve, período de industrialização em Portugal. Em contraste com anos recentes, onde metade do desemprego continua a acontecer dentro das fábricas. A realidade mudou.
A revolução industrial foi uma das raízes da globalização como inevitavelmente a conhecemos hoje em dia, e esta história foi semelhante em todo o mundo. Continua a acontecer, e os mesmos argumentos usados em nome do progresso e da evolução humana são hoje tão válidos como no passado.
Desde o início, a industrialização começou uma nova era dominada pelo espectro da funcionalidade e da técnica, onde a figura do engenheiro representa o que o sacerdote foi na Idade Média. Onde o Alto Forno ou a grua do estaleiro naval assumem a mesma monumentalidade que teve a catedral em séculos anteriores. Bernd e Hilla Becher, o duo de fotógrafos alemães que criaram durante décadas um documento da arquitectura industrial germânica, concordaram nessa mesma ideia:
“Tal como o pensamento medieval é manifestado numa catedral gótica, a nossa era revela-se em edifícios e dispositivos tecnológicos. (…) As tarefas estruturais de eras passadas foram, na sua essência, realizadas. Os desafios a que se enfrenta a habilidade inventiva do Homem são de uma natureza técnica”.
A técnica é normalmente apoiada e revelada em números. No entanto, num tempo em que as notícias que nos rodeiam contêm cada vez mais estatística económica e relatórios financeiros de todo o tipo, torna-se necessário visualizar qual a origem de tais entidades numéricas. Quando temos uma imagem daquilo que a economia representa na realidade, ela deixa de ser uma teoria abstracta, um exercício meramente racional, para em vez disso se transformar em algo com um significado directo para as vidas das pessoas.
É um facto que números, assim como a ideia de progresso arrastaram consigo as vidas e sonhos de gerações inteiras de indivíduos, famílias, trabalhadores, gerentes, investidores. Mas no final, de quem falamos? Como é que chegámos ao ponto em que nos encontramos? Números e estatísticas foram, e ainda são, um resultado directo de máquinas e instalações industriais que transformaram profundamente a forma como as sociedades humanas se organizaram em si mesmas. A indústria provocou também uma enorme transformação na paisagem, quer através dos fenómenos da arquitectura e do urbanismo como através da poluição e dos efeitos da química. Cidades foram erguidas, e agricultores tiveram de se mudar para outro lado. Os rios tornaram-se impróprios para a pesca.
Uma viagem solitária foi feita ao longo de vários meses para descobrir alguns dos maiores ícones industriais da história recente de Portugal. E hoje transformados em zonas arqueológicas a apodrecer aos poucos. Estas foram empresas que afectaram dezenas de milhares de pessoas; grande parte delas migrando do interior e sem grande escolha que não a de trocar o trabalho na agricultura pelas novas indústrias carentes de mão-de-obra.
Lost Empires é um projecto de fotografia documental que procura seguir a tradição de criar um documento visual de uma era. Nalguns casos é uma era que está em risco de extinção, ou que até já morreu. Enquanto noutros é uma história de transformação e adaptação a novas circunstâncias.
Ao mesmo tempo este também é um registo histórico. Muitas destas áreas, edifícios, e instalações já foram demolidas. Outras ousam lentamente seguir o caminho da reabilitação. Enquanto muitos outros enfrentam o risco iminente de derrocada a qualquer momento uma vez que já nada pode ser feito para salvar tais espaços. Em tal contexto, cabe por isso à fotografia assumir o papel da derradeira salvação. A câmara ajuda a fornecer um último registo daquilo que resta destes marcos territoriais e ícones da arquitectura industrial portuguesa. E que continuam presentes não só na paisagem como também na memória colectiva daqueles que ainda vivem com ela.
Ao longo destas imagens o espectador e leitor terá a oportunidade de aprender e observar a arquitectura de algumas das maiores empresas industriais da história recente de Portugal, tal como terá a mesma chance de observar o que resta e o que não resta, que traços da história, do tempo, do barulho e da poluição, continuam presentes dentro das fábricas abandonadas. Ou ainda quão grande é o impacto da erosão e das forças da natureza que já tomaram conta destes espaços.
Esta viagem visual irá levá-lo (ou levá-la) até à margem sul de Lisboa, ao longo do rio Tejo, cujo acesso rápido ao porto da capital e ao Atlântico era visto por estas quatro indústrias de peso, agora fotografas, como um ponto estratégico. Tal não foi uma coincidência. Desde o século XV que o Tejo havia sido um ponto estratégico, ou ponto de partida para os marinheiros que dali embarcaram nas caravelas e deram início a uma série de viagens que iriam mudar por completo a nossa percepção do planeta.
Esta é também uma oportunidade para reflectir sobre o significado de tamanho vazio industrial, sobre o que este diz acerca de um país que cria hoje em dia mais emigrantes do que nascimentos. Um país cujos engenheiros se formam e partem em seguida rumo às zonas industrial do século XXI.